A humanidade está movimentando cerca de 48 bilhões de toneladas de materiais por ano, mas, desse valor, “30 bilhões viram lixo”, informa
Maurício Waldman à
IHU On-Line. Na era do consumo descartável, as classes “abastadas” geram cerca de 1,5 a 2,0 kg/hab/dia de resíduos, enquanto entre os mais pobres o grau de resíduos despenca para 0,3 kg/hab/dia. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o pesquisador esclarece que esses dados demonstram que as “estatísticas mascaram contrastes sociais ao diluírem o volume total de lixo gerado dividindo-o pelo conjunto da população”.
Para reverter a
produção excessiva de lixo,
Waldman enfatiza a necessidade de “rever os processos produtivos, que se pautam pela descartabilidade premeditada dos produtos, que precocemente se tornam obsoletos”. E compara: “Em 1997, a vida útil de um computador era em média seis anos. Mas, hoje em dia a validade desses equipamentos foi abreviada para apenas dois”.
Autor do livro
Lixo: cenários e desafios (Cortez, 2011), ele também comenta o
Plano Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, que está em consulta pública no site do Ministério do Meio Ambiente após permanecer 19 anos no Congresso. Entre as críticas,
Waldman faz referência às brechas para o avanço da incineração do lixo no país. “Alemanha, Bélgica, Suécia, Irlanda, Países Baixos e os Estados Unidos certamente possuem incineradores. Mas nesses países os índices de reciclagem são respectivamente 48%, 35%, 35%, 32%, 32% e 31%. Devemos salientar que a última porcentagem refere-se aos EUA, considerado campeão mundial de desperdício. Entretanto, como se sabe patinamos em míseros 13%! Como então propor queimar lixo quando temos tanto o que avançar na recuperação dos materiais descartados?”, questiona.
Maurício Waldman é graduado em Ciências Sociais, mestre em Antropologia Social e doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo – USP, com a tese
Água e metrópole: limites e expectativas do tempo (2006). Cursou o pós-doutorado no Instituto de Geociências da Universidade de Campinas – Unicamp. Foi professor da Unicamp e atualmente é colaborador no site Geografia e Cartografia – Geocarto e do Centro de Estudos Africanos da USP – CEA-USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Desde quando o Brasil investe em políticas públicas para tratar da questão do lixo?
Maurício Waldman – A expressão política pública tornou-se corriqueira nos últimos anos e ganhou um significado quase icônico no imaginário social. No senso comum, a terminologia é entendida como um conjunto de práticas que visam garantir a qualidade do serviço administrativo, beneficiando o conjunto da população. Todavia, devemos recordar que o Estado interage com diversas forças sociais, representativas de atores que, muitas vezes, sustentam posições antagônicas entre si. Além disso, a gestão administrativa é impactada por toda sorte de inferências culturais, sociais, políticas e econômicas conjunturais. Com esses reparos em vista, já em 1830, em pleno Primeiro Império Brasileiro, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro manifestou-se a respeito da limpeza pública.
IHU On-Line – E o que ela dispôs?
Maurício Waldman – Olha que curioso: os autos da normatização consideravam que a atribuição do serviço de coleta de lixo, além da limpeza, varrição das ruas, praças e logradouros, incluía a retirada de loucos e bêbados que estivessem perambulando pelas vias da cidade, assim como o apresamento de animais ferozes e de outros que pudessem incomodar a população. Esse decreto demonstra de forma emblemática como a questão do lixo
– ao se inserir diferencialmente no tempo, no espaço e na cultura
– induz diferentes modos de apreciação e sistemas de gerenciamento dos resíduos. Para complementar, seria pertinente recordar que, de um ponto de vista sociológico, a ausência de “políticas públicas” não significa inexistência de normas objetivas. Afinal, uma “não política” pública também é uma política.
IHU On-Line – Considerando o aumento populacional e a produção de resíduos, quais os maiores desafios do Brasil em relação ao lixo produzido?
Maurício Waldman – É preciso primeiramente ressalvar que, de um ponto de vista geográfico e sociológico, não é correto tecer correlações associando mecanicamente o aumento populacional com a geração de lixo. Na realidade,
o lixo tem se expandido numa proporção que ultrapassa em muito o incremento demográfico. Para exemplificar, entre 1991-2000, a população brasileira cresceu 15,6%. Mas os descartes expandiram 49%. Em 2009, o incremento demográfico foi da ordem de 1%. Mas os rejeitos aumentaram 6%.
IHU On-Line – Como então observar o processo de geração de lixo?
Maurício Waldman – Um recorte fundamental é o que associa o lixo às dinâmicas socioespaciais. Então, mais do que a demografia, pesam com muito mais ênfase as correlações sociais. Nesse exato sentido, os resíduos sólidos brasileiros são extremamente dessimétricos. Isto é, possuem analogias com as injunções que gravam a sociedade nacional com a marca da disparidade. Nessa perspectiva, um aspecto matricial é o fato de fração significativa do
lixo domiciliar brasileiro ser gerado por pequeno número de núcleos urbanos. As 13 cidades mais populosas do país (agregando um quinto dos brasileiros) perfazem 31,9% do lixo residencial. Na sequência, as 200 municipalidades mais populosas (3,59% do total dos municípios brasileiros) são responsáveis por 60% do lixo urbano.
IHU On-Line – E do ponto de vista social, como se coloca essa questão?
Maurício Waldman – Um ponto a ser destacado preliminarmente é que o Brasil tem sido recorrentemente apontado como um dos países mais desiguais do mundo. Mesmo as políticas de geração de renda e medidas de alcance social como
Bolsa Família não têm alterado esse quadro geral. O país se mantém na condição dos mais dessimétricos do planeta. Ora, não há como as contradições sociais não estarem corporificadas no lixo. Num plano meramente quantitativo, no Brasil a geração de resíduos oscila entre 1,5 e 2,0 kg/hab/dia (ou mais) de rebotalhos nas classes abastadas. Porém, esse coeficiente desaba para 0,3 kg/hab/dia (ou menos) nos segmentos mais pobres.
Nesse entendimento, fica claro que muitas estatísticas mascaram contrastes sociais ao diluírem o volume total de lixo gerado dividindo-o pelo conjunto da população. Assim, fornecem “médias” que refletem uma noção de cidadão abstrato e, portanto, prestigiando responsáveis indiferenciados pelo descarte do lixo. Alerte-se que as estatísticas mostram especial predileção em avaliar os resíduos enquanto um resultado, esquecendo-se da sua filiação a processos, essenciais para entender a
maximização da geração de lixo no país nos últimos anos.
IHU On-Line – O senhor considera que o lixo pode inviabilizar a sociedade humana. Em que sentido?
Maurício Waldman – Sim. Em dois sentidos: quantitativo e qualitativo. Num dos artigos acadêmicos que disponibilizei nesse ano, convidei os leitores a refletirem com base em montantes concretos de rejeitos. Sabe-se que, do ponto de vista quantitativo, a natureza movimenta, em seu ciclo normal formado pela movimentação da crosta, vulcanismo, processos erosivos, etc., cerca 50 bilhões de toneladas de materiais por ano. A humanidade, por sua vez, está movimentando 48 bilhões de toneladas no mesmo período. É como existisse uma segunda natureza agindo no planeta! Duro ainda é saber que desses 48 bilhões, 30 bilhões viram lixo. Daí que não há como não perceber que o lixo está para tudo quanto é lado. Existe até mesmo um continente artificial de detritos em formação no Pacífico. Trata-se de um território formado por 100 milhões de toneladas de refugos, conhecido como
Grande Vórtice de Lixo do Pacífico. Estima-se que a superfície ocupada por esse novo “continente” seja de 15.000.000 de km². Em suma: quase duas vezes a extensão do Brasil, uma vez e meia a área da Europa, metade da África ou 8% da superfície do Pacífico, o maior dos oceanos do globo terrestre. Assim, tendo o problema do lixo assumido proporções tão dantescas, como discordar do geógrafo francês
Jean Gottman, que certa vez definiu provocativamente a época atual como uma
Era do Lixo. Quem ousaria dizer que ele está enganado?
IHU On-Line – E no sentido qualitativo, o que acontece?
Maurício Waldman – Contrariamente às primeiras civilizações da história, a sociedade moderna é a primeira na qual o lixo se tornou eminentemente artificial. Dito de outro modo, ele é formado por substâncias e materiais que são absorvidos com dificuldade pelos ciclos naturais ou, então, representam um perigo real para todas as formas de vida. Note que as três substâncias mais perigosas conhecidas pela ciência são resíduos: as dioxinas (que resultam da combustão do lixo), o chorume (que provém da degradação da fração úmida do lixo urbano) e o plutônio (que é o lixo nuclear). Não há qualquer sombra de dúvida: se algo não for feito urgentemente, os detritos poderão
sepultar e envenenar a sociedade humana, afetando-a de um modo que não têm precedentes.
IHU On-Line – O lixo eletrônico também se tornou um problema para a humanidade? É possível reciclar esse material?
Maurício Waldman – Vários levantamentos confirmam que tal classe de detritos representa cerca de 5% do lixo urbano planetário. Seriam então 50 milhões de toneladas anuais de resíduo eletrônico, um volume suficiente para lotar vagões ferroviários de carga dando volta completa na circunferência terrestre. O preocupante é que esses rebotalhos poderão simplesmente triplicar em poucos anos. Isso sem contar que já existem cerca de 4,8 bilhões de toneladas desse tipo de lixo amontoadas sabe-se lá como. E retomando a questão da artificialidade do lixo contemporâneo citada na resposta anterior, os restos eletrônicos são um estorvo ambiental de primeira linha. Um simples monitor pode requerer 300 anos para se decompor. É perturbador saber que a sucata eletrônica chega a perfazer 70% dos metais pesados presentes no solo e em corpos aquáticos e que, ademais, é reciclada, quando muito, na proporção de somente 10%. É claro, que a reciclagem por si só não resolve o problema como um todo. Mas ajuda!
IHU On-Line – Como evitar esse problema numa época em que a obsolescência tecnológica impera?
Maurício Waldman – É preciso rever os processos produtivos que se pautam pela descartabilidade premeditada dos produtos, os quais precocemente se tornam obsoletos. Em 1997, a vida útil de um computador era em média seis anos. Hoje em dia a validade desses equipamentos foi abreviada para apenas dois. Desse modo, além das pessoas
refrearem seus impulsos consumistas, trocando de celular, de TV e de computador a torto e a direito, a indústria tem que fazer a sua lição de casa. Definitivamente e de uma vez por todas, a era do obsoleto tem que acabar.
IHU On-Line – O senhor aponta que os brasileiros descartam 5,5% dos resíduos planetários. O que esse percentual representa, considerando o tamanho do planeta?
Maurício Waldman – Muito ou pouco em si mesmo não existe. Precisamos sempre recorrer a um enfoque relacional para melhor aquilatar o significado real das cifras com as quais trabalhamos. Nessa sequência, importaria ressalvar que, conquanto a população brasileira seja equivalente a 3,0% do total mundial e que seu PIB corresponda a 3,5% da riqueza global, descartamos 5,5% dos resíduos planetários. Não precisa ser matemático ou geógrafo para notar a disparidade desses números. Mais ainda: que algo profundamente errado caracteriza esse processo.
Outro bom parâmetro é a metrópole de
São Paulo. Faz tempo que a capital paulista consta como a terceira cidade no mundo que mais descarta restos. Na competição em gerar lixo,
São Paulo só perde para Nova Iorque e
Tóquio. Entretanto, quem disse que São Paulo é a terceira cidade mais rica do globo? Não é de jeito nenhum. De acordo com diversas fontes e na melhor das hipóteses, é o décimo PIB urbano mundial. Então como pode ser a terceira no ranking de ejeção de lixo? Por certo, o que podemos abstrair dessas cifras e das contradições que inserem, é que o Brasil é um grande gerador mundial de lixo e, ao mesmo tempo, que sua problemática de resíduos não é redutível a fórmulas econométricas clássicas. Como disse, temos que começar a pensar processos e não apenas os resultados.
IHU On-Line – O senhor também destaca que apenas 13% dos resíduos secos gerados no país são recuperados, e que apenas 2% são coletados pelos programas de Coleta Seletiva de Lixo. O que dificulta, em sua avaliação, a adesão dos municípios brasileiros à coleta seletiva?
Maurício Waldman – Há um aspecto objetivo que contribui, e muito, para explicar a razão da baixa inserção dos programas de
Coleta Seletiva de Lixo (CSL) nos circuitos que abastecem a indústria recicladora. Indo direto ao ponto, um aspecto reporta ao seu elevado custo operacional. Conforme registrei no meu livro
Lixo: cenários e desafios, as planilhas de custos e de retornos obtidos com a reciclagem apuram que para cada 10 dólares investidos nos programas, a média da receita é R$ 1,30. Outro indicador é que o custo médio da
CSL, orçado em US$ 221/t em 2008, é cerca de cinco vezes mais alto do que a coleta convencional. Claro que isso poderia ser objetado com o argumento que existem benefícios ambientais que nunca são contabilizados pelos economistas tradicionais. As aferições de custo são recidivamente contábeis e não visualizam o processo como um todo, particularmente nas suas interfaces ambientais. Mas do ponto de vista logístico, é inegável que ainda não foi inventado nenhum processo mais eficiente do que a catação. Nesse sentido, o interessante mesmo seria apoiar os catadores, que, na opinião de muitos especialistas, são com razão os grandes heróis ambientais do Brasil urbano. Os que dizem que a situação do lixo no Brasil está um caos, não fazem nem ideia das dimensões da catástrofe na hipótese de cessar a atuação dos catadores. Aí sim as pessoas veriam o que é calamidade de verdade.
IHU On-Line – Como vê a questão das cooperativas que devem gerir os resíduos sólidos, como sugere o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, aprovado em agosto do ano passado?
Maurício Waldman – Em continuidade com o que coloquei, os catadores são fundamentais para a gestão do lixo e manutenção dos equilíbrios ambientais no meio urbano. Seria, nessa perspectiva, melhor percebê-los pelo que de fato são: trabalhadores que se dedicam à recuperação de materiais recicláveis. Todavia, recorde-se que, a despeito da capital importância dos catadores, sua atuação encontra forte resistência em muitos setores da sociedade. Pesa sobre os catadores o estigma da maledicência do lixo.
Embora seu trabalho seja útil e imprescindível, sua presença no campo visual incomoda muitos setores abastados, o que explica desde a má vontade em apoiá-los até as mais descaradas
práticas persecutórias. Uma pregação constante, por vezes apaixonada, coberta de objeções éticas e morais, eventualmente apelando para um receituário com conotações racistas, pode ser notada no discurso de muitos setores contra os catadores. Isso contribui para entender por que em 2010, do universo de 5.565 municípios brasileiros, apenas 142
– ou seja, 2,5% do total
– mantinham parceria com associações de catadores. Trata-se de uma realidade que precisa ser alterada urgentemente, com a implementação de políticas públicas efetivas favoráveis à catação.
IHU On-Line – E as cooperativas? Como tem sido sua implantação?
Maurício Waldman – É importante lembrar que, apesar de idealmente muito atraentes, as cooperativas têm avançado lentamente, sendo uma das razões as dificuldades da sua implantação junto aos próprios catadores. Convém não esquecer, a população catadora se consolidou ao longo de amplo histórico de repúdio institucional e social. Muitos dos catadores são sem teto, vítimas da exclusão e pessoas que perderam para sempre seus postos no mercado formal de trabalho. Eles enfrentaram a solidão do desamparo, a falta de oportunidades e a agressão contínua das instituições públicas. Não admira, pois que aprenderam a agir por conta própria, base de um “empreendedorismo” que alguns analistas identificam no comportamento da categoria.
IHU On-Line – O que fazer então?
Maurício Waldman – A constituição de fundos cooperativos, proposta endossada por especialistas favoráveis à remuneração por serviços ambientais prestados pelos catadores
– que eu pessoalmente entendo como medida óbvia e premente
–, enfrenta diversos obstáculos, que devem ser pensados e/ou revistos com cautela. Dentre esses, o desafio de esboçar um desenho institucional que permita uma gestão que não seja demasiadamente complexa para ser operacionalizada. Além disso, riscos inerentes associados às atividades de financiamento e microcrédito, caracterizadas por elevadas taxas de inadimplência e conflitos potenciais com as agências financiadoras, devem ser adequadamente administrados e diferencialmente monitorados.
IHU On-Line – Como avalia o Plano Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, que está em consulta pública no site do Ministério do Meio Ambiente? Que aspectos deveriam fazer parte da Política Pública de Resíduos Sólidos?
Maurício Waldman – Em primeiro lugar, tenho ressalvas relativas à euforia que muitos devotam ao
PNRS. Estamos num país onde as leis podem “pegar” ou não. Aliás, o próprio
PNRS teve um longo “parto” para ser aprovado: o projeto perambulou pelos corredores do Congresso durante 19 longos anos! Durante esse período, o país observou a multiplicação dos lixões, o descaso com a reciclagem e o descalabro da distribuição gratuita de sacolinhas pelo comércio. Mais: a ausência de um marco legal implicou na perda de milhões de toneladas de materiais úteis; impactou ecologicamente vastos espaços; trouxe prejuízos para a saúde da população; contribuiu para a persistência de posturas criminalizando os catadores. Isso apesar de, como foi colocado, tais trabalhadores prestarem serviço ambiental inestimável para a sociedade. Por fim, eu diria que, apesar da lei ser bem-vinda num país que se destaca na geração de lixo, ela tem abordagens que seriam passíveis de ajustes e correções.
IHU On-Line – Quais seriam esses aspectos?
Maurício Waldman – O primeiro deles reporta a uma questão conceitual. A temática do lixo está visceralmente associada ao modo de vida moderno. Vivemos numa sociedade que
– como dizia o pensador francês
Abraham Moles – produz para consumir e cria para produzir, num ciclo onde a noção fundamental é a velocidade e a descartabilidade dos materiais enquanto vetor fundamental. Ora, isso sugere que, além dos “R” de
Reduzir, Reutilizar e Reciclar – que constam no
PNRS –, seria necessário agregar outro “R” ainda mais essencial: o de Repensar as modalidades de produzir, consumir e descartar. Por definição, lixo não se resume ao saquinho que colocamos na calçada. Sua gênese encontra primeiramente abrigo em noções culturalmente aceitas de status e de consumo, acepções que solicitam revisão urgente.
O
PNRS abre brechas para o avanço da incineração, o que na opinião de boa parte da comunidade de especialistas do lixo é um equívoco a toda prova. Não adianta tentar mascarar a incineração como sendo “verde” em razão de modelos mais avançados recuperarem a energia do lixo. Isso é uma falácia. De um modo ou de outro, os incineradores continuam a ser um problema.
IHU On-Line – Por quê?
Maurício Waldman – Em primeiríssimo lugar, vivemos no maior país solar do mundo.
José Walter Bautista Vidal, engenheiro responsável pelo
Programa Proálcool e considerado um dos cérebros privilegiados da engenharia nacional, lembra que o Brasil recebe do Sol por dia energia equivalente a
– note bem
– 320.000 hidrelétricas de Itaipu! Isso todo o santo dia! Só esse argumento põe dúvidas sobre as tais usinas de incineração com recuperação de energia, assim como para as mega-hidrelétricas e as centrais nucleares. Em segundo lugar, dizer que estamos adotando tecnologia avançada de primeiro mundo com os incineradores é uma colocação pelo mínimo mal-intencionada.
Alemanha,
Bélgica,
Suécia,
Irlanda, os
Países Baixos e os
Estados Unidos certamente possuem incineradores. Mas nesses países os índices de reciclagem são respectivamente 48%, 35%, 35%, 32%, 32% e 31%. Devemos salientar que a última porcentagem refere-se aos EUA, considerado campeão mundial de desperdício. Entretanto, como se sabe patinamos em míseros 13%! Como então propor queimar lixo quando temos tanto o que avançar na recuperação dos materiais descartados? E o que dizer do custo desses equipamentos, da dependência tecnológica, das dioxinas, dos prejuízos para a reciclagem e das perdas que serão arcadas pelos catadores?
IHU On-Line – Qual é a maneira ideal de descartar o lixo? Lixões e aterros sanitários são locais adequados para concentrar tantos resíduos?
Maurício Waldman – Costumo dizer que o essencial é
repensar nosso estilo de vida e, pela ordem, aplicar depois a
Redução,
Reutilização e a
Reciclagem. Portanto, não acredito que os aterros sanitários
– e muitíssimo menos os lixões
– sejam uma solução ideal para gerenciar descartes. Certo é que essas instalações fazem parte da sistemática de
gestão do lixo, até porque não existe sociedade que não gere rebotalhos. Essa história de
lixo zero é pura e simplesmente uma peça de ficção. Mesmo com procedimentos criteriosos, teremos no final das contas que nos defrontarmos com restos que solicitam algum tipo de disposição e/ou confinamento adequado. Que seja então, em face das opções colocadas pela pergunta, o aterro sanitário. Nesses equipamentos, e ao contrário dos lixões, pelo menos os efluentes líquidos (chorume) e gasosos (metano), são drenados e monitorados. O que é fora de cogitação é a continuidade dos lixões no nosso país.
IHU On-Line – Qual a responsabilidade do consumidor quanto ao destino dos resíduos sólidos e do lixo produzido?
Maurício Waldman – É muito grande! O consumidor é o elo final da cadeia produtiva e de consumo. Como está colocado em
Lixo: cenários e desafios, toda vez que o consumidor repensa suas compras e o uso que faz dos produtos, isso retroage positivamente no fluxo de materiais. Ou seja, é menos ferro retirado da terra, mais água na fonte, menos centrais de energia para serem construídas, mais alimento salvo do desperdício disponibilizado para a população. O consumidor consciente, juntamente com uma sociedade participante e um Estado atuante, é um ator privilegiado numa gestão integrada do lixo. Contudo, é importante ressalvar que o Estado cumpre uma função essencial em toda essa engenharia de gestão e monitoramento dos resíduos. Nesse sentido, vejo que as políticas públicas para os rejeitos devem frisar uma educação ambiental que atenda esse princípio básico.
IHU On-Line – Que direcionamento deveria existir para uma educação ambiental que atendesse essa prioridade?
Maurício Waldman – Creio que apelaria para o sociólogo
Roberto Schwarz quando ele fala em ideias fora do lugar. Fico vendo a criançada na escola fazendo cartaz ambiental com pandas, baleias e o mico-leão-dourado. Também são comuns trabalhos centrados em florestas e outros ambientes que não fazem parte do dia a dia das pessoas. Ora, existe ideia ambiental mais fora do lugar do que isso? Indagaria: alguém manda e-mail para a baleia, é vizinho do panda? É cômodo demais dar aula sobre uma sustentabilidade que não integra o nosso cotidiano de vida.
Precisamos na realidade é
mudar as atitudes que integram as rotinas urbanas. No mundo atual, precisamos antes de tudo apagar a luz quando saímos do quarto, fechar a torneira quando não estamos utilizando água e por um ponto-final no desperdício dos alimentos. E para aqueles que poderiam questionar que o “mundo selvagem” estaria sendo deixado de lado, não nos deixemos enganar. Cabalmente, as espécies estão ameaçadas porque a civilização moderna está consumindo como nunca os recursos dos ambientes onde insetos, aves, peixes, anfíbios, répteis e mamíferos vivem e se reproduzem. Portanto, quando apagamos a luz, fechamos a torneira e segregamos o lixo estamos seguramente auxiliando na preservação dos ambientes naturais em que essas espécies vivem.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Maurício Waldman – Sim. De acordo como destaquei em meu livro
Lixo: cenários e desafios – aliás, obra finalista do
Prêmio Jabuti 2011 no quesito melhor livro de Ciências Naturais
–, as pessoas não podem se deixar dissuadir por aqueles que não sabem o que não é possível. Todos devem fazer sua parte, e só parar para verificar o andamento das coisas depois de terem completado o seu quinhão. Então é isto: o lixo é um desafio para todos nós, instigante não só pelas dificuldades, mas pelos projetos e expectativas que insere. Boas notícias então: lutemos por elas!
(Por Patricia Fachin)
FONTE: IHU